Outubro Rosa? Pessoas trans alertam para invisibilidade dos seus corpos na prevenção ao câncer de mama

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O câncer de mama pode atingir todas às pessoas que possuem seios, sejam mulheres ou homens cis ou trans, pessoas transmasculinas ou não binárias. Por isso, pessoas trans defendem a necessidade de ampliar o olhar sobre a campanha do Outubro Rosa e incluir os seus corpos nas ações de prevenção e combate à doença.

A invisibilidade dos seus corpos reflete na falta de pesquisas sobre o assunto, na ausência de especialização para atendimento e no pensar formas diferentes de ser para além da binaridade mulher e homem cisgêneros (que se identificam com o gênero que lhe foi designado ao nascer).

“O debate que deixa de incluir pessoas trans é um desserviço, porque a gente entende que o câncer de mama está atrelado a pessoas que tenham um desenvolvimento da glândula mamária. Existem mulheres trans e travestis que colocam prótese e que fazem uso de hormônios. Esse uso de hormônios vai dar uma acelerada no desenvolvimento da mama, com isso ela vai estar propícia a desenvolver ou não o câncer de mama. É importante a gente pensar na universalização de um sistema humanizado, pensar em como incluir as pessoas trans nessas pautas. Propagandas que não sejam propagandas cisgenerificadas, propagandas pensadas somente para pessoas cis, mas pensando na abrangência de outras existências”, pontua a ativista dos movimentos social, LGBT e de mulheres negras; pedagoga, especialista em gênero, raça, sexualidade e etnias; e escritora, Thiffany Odara.

A transfobia estrutural e institucional é apontada como principal obstáculo para que na prática muitos profissionais de saúde não acessem nem se interessem quanto às informações referentes à saúde das pessoas trans e travestis.

O Ministério da Saúde dispõe de uma cartilha de Atenção Integral à Saúde da População Trans dentro do Sistema Único de Saúde. Em 2011, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) foi instituída no país. Desde 2012, por exemplo, a pasta permite a impressão do Cartão SUS somente com o nome social.

“Eu faço sempre o meu autoexame em casa. Eu estava com dificuldade, antes da retificação de nome, de marcar um exame de mama. Como agora fiz a retificação, se torna mais fácil. Mas, é um caso que a gente precisa pensar até para essas pessoas que não são retificadas. Eu acho que essa campanha do Outubro Rosa tem que pensar no desenvolvimento dessa glândula mamária até para homens cis que têm esse desenvolvimento”, relata.

No entanto, a retificação do nome ainda esbarra na questão binária e impacta diretamente no acesso aos serviços de saúde de maneira geral, e na maior parte das vezes continua sendo motivo de constrangimento.

“Quando a gente retifica nome e gênero no Cartão do SUS, e que eu vou fazer um exame com um urologista, o sistema que é cisgenerificado, aquele sistema pensado para corpos não trans, vai recusar o meu atendimento porque vai entender que corpos femininos não têm testículos e não têm pênis. E a gente precisa desmistificar isso”, frisa Odara.

O estudante de psicologia, Dhan Tripodi, reitera que os homens trans ao retificarem o nome dentro do plano de saúde, por exemplo, passam a ter acesso apenas a médicos ligados à saúde masculina cis. “A gente não tem acesso, tem que entrar na justiça para ter acesso à ginecologia. Em relação ao SUS também, porque o SUS dá como se nós fôssemos fraude. Porque se a gente está retificado como homem, a gente não tem direito a fazer uma ultrassonografia ou algo do tipo”.

Odara defende a necessidade de um atendimento desde a saúde básica para fora dos ambulatórios trans. “Não precisamos somente de redesignação genital, precisamos de um atendimento humanizado. Precisamos ser atendidas e atendidos nas Unidades de Pronto Atendimento, nas Unidades de Saúde da Família, ser atendidas não só no ambulatório trans. Eu preciso aferir minha pressão, fazer exames de rotina, check up, eu preciso ter acessibilidade. É um direito”.

O transativista Bruno Santana destaca que existem profissionais de saúde ligados à causa em Salvador, como Erik Abade, mestre em Saúde Coletiva, pesquisador do Observatório de Análise Política em Saúde OAPS/ISC, enfermeiro e colaborador do Campo Temático Saúde da População LGBT da Secretaria de Saúde de Salvador e Lúcia Barbosa, psicoterapeuta Jungiana. Ele reafirma a necessidade pensar outra lógica de abordagem para as campanhas de saúde.

“Eu discordo de campanhas que generificam os corpos. Eu acho que esse azul e rosa aí [Novembro e Outubro] não era para estar mais dentro da perspectiva da saúde. Se a gente quer construir uma saúde que é plural e diversa, que vai respeitar todas as formas de ser e estar no mundo, e aí pensando as identidades trans nesse processo, entendendo que existem novos atores sociais e que subvertem essa lógica binária que é cisheteronormativa, que constrói uma saúde a partir de perspectivas biologizantes, de perspectivas excludentes e transfóbicas, que vai a todo momento excluir esses corpos outros, que não estão dentro dessa norma de gênero. Precisamos usar todas as cores dentro desse Outubro e Novembro ou até brincar, um Outubro Azul e um Novembro Rosa”.

Bruno Santana, que também é professor, licenciado em Educação Física pela UEFS, pesquisador de gênero e raça, afirma, ainda, que a falta de estudos científicos que levem em consideração as especificidades de pessoas trans contribuem para o processo de invisibilização também dentro dos espaços de saúde.

“Por falta de uma saúde que contemple os corpos trans, muitos homens trans e pessoas transmasculinas que não conseguem ou não desejam realizar a mamoplastia masculinizadora estão mais suscetíveis a desenvolver o câncer de mama.  Sobretudo, devido ao uso do binder [faixa compressora] utilizado por muitos homens trans para esconder os seios ou como costumamos dizer ‘os intrusos’. O que causa uma série de problemas de saúde, não só no quesito da postura, mas, também, os machucados e lesões no tecido mamário, sem falar no uso dos hormônios”, frisa.

“Geralmente, nós homens trans usamos um binder e, inclusive, é até uma coisa que é necessidade para gente consultar a mastologia para ver como é que está a situação dos peitos e tal, mas muitos homens trans não lidam bem com isso. Então, acaba dividindo um pouco, mas sim existe uma demanda por essa pauta de ter esses atendimentos [de ginecologia e mastologia]”, contrapõe Dhan. “Mas é muito importante que os homens trans venham a aderir ao movimento de se tocar, de fazer o autoexame”.

Existem diversas formas de ser e estar no mundo, diferentes significados do que é ser feminino e masculino que ultrapassam as genitálias, e é urgente estruturar um sistema de saúde capaz de atender pessoas, sejam elas trans, travestis, cis, não binárias, intersexuais e como mais se identificarem.

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